Escolhi o teu amor e às vezes pergunto-me como foste capaz de mo deixar
fazer. Lumes como tu são tiros à queima roupa, mas eu pareço colete à prova de
bala. Talvez deva culpar a pólvora silenciosa que és. Nem senti o buraco fundo
e largo no meu peito quando ela neste se instalou. Ás vezes ainda tenho de
relembrar o porquê de me debater contigo abrigada numa trincheira mais ou menos
larga, mais ou menos forte. Nunca tive como sonho amar-te num campo de
concentração. Íamos acabar por morrer os dois.
Escolhi o teu amor porque, num lugar remoto e só uma vez conhecido, me
quiseste. Verdadeiramente. Brincavas comigo porque, num lugar presente e
publicado no meu sorriso, te quis. Apaixonadamente. Mas as nossas guerras eram
outras, as nossas ideologias díspares. Foi fogo livre o que houve entre nós.
Foram feridas abertas, disparos certeiros, dias ao som de corpos rebolando em
terra suja e quente. Fomos inimigos, raiva e revolução. Foste tu a privar-me de
água, de alimento, a arranhar-me a face suada das tuas mentiras, das tuas
promessas não cumpridas que eu tatuei em sítios que tu nunca verás. Foste tu,
tu que me amavas pela noite, clandestino e desleal sabendo do meu cansaço, da
minha luta vã. Fui eu, chorosa da guerra fria a que nos obrigavas, a ceder às tuas
mãos repletas de pólvora ligeiras em mim, despindo mantos de orações e
certezas, deixando cair dos bolsos as recargas que me permitiriam vencer-te,
eliminar-te. E adormecia no teu peito, como se lá fora fosse Primavera, tempo
de paz. Mas a manhã chegava e tu já lá não estavas. Exaltada e perdida
procurava com mãos frenéticas restos de salvação, mas era adivinhar-te astuto e
calculista e reconhecer que tinhas apanhado todas as minhas balas, todas as
minhas armas, toda a minha roupa. E era ver-me, despida de mim mesma, frente a
ti. Olho-te, decidindo que o pior não é a guerra, que o pior é o que vem depois
dela, que o doloroso é recomeçar, é olhar para o território que nos pertencia e
descobrir destruição em cada relevo. Que o que nos mata é ser atingidos por
quem mais queremos bem, por quem cultivamos sentimentos parecidos com os que
vêem nos livros utópicos que eu, tantas vezes descrente de um amor maior, gosto
de ler. Que o difícil é salvar vidas, principalmente a nossa, cedendo ao
inimigo a parte que lhe pertence, o presente da vitória.
Contudo, eu não tenho nada para te dar.
Escolhi o teu amor. E isso devia chegar.